Fanatismo religioso, violência e redenção em “Under the Banner of Heaven”


Não é incomum topar com o tema fé sendo explorado pelas obras de ficção de crime. Líderes religiosos e seus seguidores, muitas vezes, são mostrados como predadores cínicos, comportando-se de forma oposta à mensagem pregada. Nesse ponto, Under the Banner of Heaven  foge do lugar comum. Na série protagonizada por Andrew Garfield, religião, fanatismo, angústia, dúvida e redenção se misturam do primeiro ao último minuto da série. Ponto positivo para os autores que evitaram tratar o tema de forma maniqueísta.

A série leva o nome do livro do gênero true crime do autor Jon Krakauer. A história narra a investigação de um duplo homicídio em 1984, no seio da comunidade mórmon de Salt Lake City, Utah. A suspeita sobre a morte da mãe, Brenda, e filha, Erica, de um ano e meio, caem sobre o pai, Allen Lafferty. Esta, uma das famílias mais poderosas do estado.

Não li o livro, porém acredito que este seja mais “cru” e vá direto ao ponto, como toda investigação jornalística. A série, entretanto, dramatiza os eventos e coloca o espectador no lugar dos detetives Jeb Pyre, um mórmon interpretado por Garfield e Bill Taba, um homem de ascendência indígena interpretado por Gil Birmingham. Enquanto Taba é um veterano recém chegado de Las Vegas, Pyre é um homem novo e um típico pai de família classe média: uma mulher, duas filhas, uma casa bonita no subúrbio e frequentador da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Fora do comum, apenas a mãe com demência.

A autoria do crime aponta para o fanatismo mórmon e mexe com toda a comunidade, bem como abala a fé de Pyre, cuja leitura de mundo é, sobretudo, religiosa. A mãe, os assassinatos, o batismo das filhas, a pressão dos líderes mórmons são vistos como testes pelo detetive.

A narrativa de Allen entrelaça a história de amor do casal e como ela o levou a perda da fé em sua religião e do afastamento da sua família, bem como a história de Joseph Smith e os primórdios do mormonismo. O detetive Pyre é alvejado, relato após relato, pelas dúvidas do viúvo. Nesse sentido, os personagens refletem as suas próprias angústias um no outro.        

A relação familiar de Allen com os seus cinco irmãos e os pais é um capítulo a parte dentro da história. Permeada de violência física e psicológica, ela é muito bem definida pela a frase do detetive interpretado por Garfield “Our religion breeds dangerous men” (“Nossa religião gera homens perigosos”, em tradução livre). Os irmãos de Allen, na ausência do patriarca, mergulham no fanatismo religioso, usando-o para criticar a decadência da sociedade atual, para justificar o não pagamento de impostos e o retorno dos “velhos costumes”, que não passam de um patriarcado brutal, representado, entre outros pontos, pela ênfase na poligamia (prática há muito abandonada pelos mórmons). O processo de decadência dos irmãos é um resultado inevitável. 

O binômio religião-violência é explorado ao longo dos sete capítulos da trama. A história do mormonismo e da sua difusão pelos EUA, marcada por uma série de atrocidades cometidas dentro e fora da comunidade, serve como elemento de fricção entre o detetive Pyre, Allen e as dúvidas de ambos sobre a religião. 

Entretanto, é preciso destacar o personagem Pyre. O policial não é uma caricatura de um homem de família religioso e conservador, um autômato governado pelas leis da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Ao contrário, sua fé, contaminada pelas dúvidas de Allen e testada contra a história da sua religião, resiste e se torna sólida diante de tanta barbárie. Curiosamente, se a religião aprisionou a família Lafferty foi a fé que libertou Pyre das suas angústias.     

Plataforma: Hulu

Elenco: Andrew Garfield, Daisy Edgar-Jones e Sam Worthington

Ano: 2022

Nota: 4/5. 

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